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Monday, June 13, 2011
Coulrofobia tem cura?
"Em seus aposentos, o palhaço tira o nariz vermelho, põe seu sorriso no copo, pendura a alma num prego e repousa."
Aconteceu no dia 18/02/2011 às 18h, na praça Oswaldo Vieira Gonçalves, a estreia do espetáculo de clown “Cata, a Megera” pelo grupo uberlandense Anjos da Alegria. A praça e sua arquitetura foi cenário para o grupo e acomodação para a plateia que ali se aglomerou: moradores do bairro Aparecida e estudantes de teatro da Universidade Federal de Uberlândia, ansiosos pela peça e ao mesmo tempo preocupados com a chuva que ameaçava cair a qualquer momento.
Apesar de certa “clownstrofobia” ao gênero teatral em questão, não há como não valorizar um espetáculo de clown de qualidade, como já presenciei alguns. Entre eles, cito “Joana D’arpo” assistido em Ribeirão Preto no ano de 2007, experiência que proporcionou um prazer extasiante por tamanha verdade e beleza do trabalho solo da atriz suíça Gardi Hutter.
Assim como a atriz europeia que se inspirou, para construção de sua personagem, na mulher brava e guerreira “Joana D’arc”, o grupo Anjos da Alegria somou pontos por sugar na fonte shakespeareana, a essência de “A Megera Domada” para a montagem de seu trabalho.
Ambos espetáculos tem uma narrativa e não são apenas gags que (re)conhecemos desde a infância, e que programas de TV ainda hoje insistem em repetir. Mais que o riso fácil e sem criticidade, as peças clownescas possuem o poder de desestruturar verdades cristalizadas, e fazer a contranarrativa de uma sociedade.
Em “Cata, a Megera” por exemplo, há a ridicularização do casamento, considerado por muitos uma instituição falida, na figura da moça que não quer casar porque não se aceitará submissa ao marido, do pai que quer levar vantagem com esse casamento e da irmã que só poderá entregar-se a um amor quando a “megera” casar-se. Catarina, a megera, tem o poder da máxima “to be or not to be” em suas mãos: ser livre e dona de seu nariz, ou ser domesticada e viver à disposição das vontades de seu marido? A situação é resolvida quando Catarina após casar-se contra sua vontade, pois fora amarrada e amordaçada, é domada pelo rústico marido... Por que uma mulher não pode casar-se, viver um grande amor e ao mesmo tempo ter autonomia e voz ativa em sua vida? Essa é a contranarrativa. O problema não é o casamento, mas, a forma como a sociedade o enxerga, como um pensamento binário: ou se é livre, ou se é preso. Uma pena a peça uberlandense não discutir essa terceira possibilidade.
Como elementos de cena o grupo utilizou um tablado colorido ao fundo que serviu de coxia para saída, entrada e esconderijo de objetos cênicos que iam se revelando no decorrer da apresentação, e posicionou a esquerda dessa estrutura alguns instrumentos musicais que eram usados para sublinhar as cenas que se desenrolavam. O tablado e a música faziam-se mesmo necessários ao espetáculo? Penso que seriam dispensáveis e que a peça seria muito bem conduzida sem os mesmos. O figurino, elaborado com apreço, mesclou antiguidade “elisabetana” à peças modernas como tênis ALL STAR e meia arrastão em sua composição.
A paródia e o exagero característicos na “palhaçaria” estavam presentes no espetáculo, assim também como o que é de mais fundamental na essência do palhaço: a disponibilidade para o jogo e para o outro, infelizmente não em todos os atores e momentos. Houve atriz conhecida por nós, ou pelo trabalho, ou por roda de amizade, que parecia não se desvencilhar de personagens vividos em outros trabalhos fora do gênero clownesco, fazendo da peça uma extensão dessas experiências, não que isso seja negativo, mas é apenas uma observação. Houve ator que parecia ainda não estar pronto/envolvido no jogo que se construía no instante da atuação, permitindo que a plateia se desligasse um pouco da peça. Entretanto, houve sim quem teve o prazer de brincar expressando tal desejo através de seu corpo, na voz e na relação com o público, e quando essas pessoas “atuavam”, os expectadores voltavam a se envolver com a narrativa.
O ápice do espetáculo deu-se quando os clowns se dirigiram ao público perguntando como Catarina deveria tratar Petruchio, e claro, a plateia sugeriu algumas situações e os atores tiveram que realizar os pedidos: um amor melodramático, uma noiva cheia de desejo e vontade pelo marido. E é aí que o espírito clown verdadeiramente vive, nesse momento em que as possibilidades de responder aos estímulos externos estão abertas.
“Cata, a Megera” conseguiu estabelecer o momento de comunhão com o público que o teatro de rua busca e, nesse sentido, a contemplação estética renegada a segundo plano não fez com que a peça deixasse de envolver o público. Diferente de “Joana D’arpo”, quando aquela desastrada clown suíça proporcionou ao mesmo tempo: comunhão e contemplação estética, e sendo europeia provou que o riso é universal.
Joana D’arpo lutou, mas morreu. Catarina lutou, mas casou e ficou “boazinha”. E para a alegria geral de todos, a chuva ameaçou, mas disse não e evitou cair naquele fim de tarde em Uberlândia! E enquanto isso, escondo minha aversão ao clown embaixo da cama...