Leka e Kaverna

Friday, July 23, 2010

"Nóis Mudemo" de Fidêncio Bogo



Simplesmente um dos textos mais emocionantes que li na vida...

"O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, toda poesia e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.-Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo! No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola!
- Oxente! Módi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.

Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
- É, professora, meu fio não aguentou as gozação da mininada. Eu tentei fazê ele continuá, mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de vida! Eu devia di te ficado na fazenda ca famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro, Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu ? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu . Comi o pão que o diabo amassô. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de te saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência.
- O rapaz afastou-me de si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!

Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.

Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas
- e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seu s pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu ! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!"

E siga desarmado para o matadouro..."

Thursday, July 22, 2010

Que...

Que eu tenha sempre calma, força e coragem para enfrentar o que vier. Que eu me torne uma pessoa mais sábia, bondosa e útil em minha caminhada. Que meu filho consiga sempre extrair força e sabedoria de sua jornada. Que eu sempre encontre alegria e prazer em meio aos espinhos, frio tenebroso e chuvas torrenciais. Que eu nunca perca minha verdade, caráter e alteridade. Que eu nunca perca minha esperança. Que eu conserve em meu coração o carinho e amor dos meus. Que eu seja sempre uma boa mãe, filha, irmã, namorada, amiga, professora, aluna... que eu aprenda com meus erros e fracassos e me torne a cada dia uma pessoa melhor!!!

Monday, July 12, 2010

Baratas



Esta história tem uns bons anos que foi escrita...
Baratas... isso lá é assunto para se escrever? Longe de mim frescura. Não tenho medo ou nojo das bichinhas, para mim não fedem ou cheiram, simplesmente existem. E senti-me muito inspirada em escrever sobre o animalzinho em questão após ter lido duas crônicas do mestre Drummond sobre o espécime. E mais inspirada ainda quando em seguida fui à cozinha beber água e eis que me deparo com um representante da classe em cima da pia, vivinha da silva, passeando tranquilamente pelo inox.
Que fiz? Bem, armei-me do detergente próximo e despejei boa quantidade do mesmo sobre ela que entrou em desespero e ficou esperneando até ter sua vida aniquilada. Eu, uma assassina... matei uma barata! (Não sei qual o efeito do detergente sobre seu corpo, mas ela morreu...)
Pensar que eu quando menina lá no Pará pegava caixinhas de fósforos e promovia o enterro de todas as baratas que amanheciam mortas pela casa. O despacho funesto dava-se nos canteiros de hortaliças de meu pai com direito a uma oração de descanse em paz, na companhia dos amiguinhos mais chegados.
Sinistro mesmo foi o que fiz com uma amiga que tinha pavor de barata quando fazíamos o Ensino Médio. A professora de Geografia (querida Delma) havia pedido a leitura prévia de um dos capítulos do “amado” livro didático para a sua aula... eu passava todo dia na casa dessa amiga antes da escola para irmos juntas, então...
Quando acordei na manhã desse dia, deparei-me com uma baratona morta no corredor da minha casa, logo, sabendo que minha amiga não pode ver uma, tive uma ideia supimpa...
Na casa de Carla, minha amiga, sem que ela visse, meti o defunto da temida dentro de seu livro de Geografia, mais precisamente entre as páginas que seriam consultadas nesse dia.
Na aula, quando a querida tia Delma pediu-nos para abrirmos o livro na página tal, Carla solta um grito, deixando livro e barata caírem ao chão. Escutou-se um:
_ Credo, que menina “véa” porca! – vindo de um garoto.
A professora ficou muito aborrecida e disse que tinha certeza que isso era trabalho de um engraçadinho... Só via o olhar reprovador de minha amiga para mim, que sabia que eu era a engraçadinha, mas não me delatou: amizade acima de tudo – apesar de eu estar me segurando para não rir na hora.
Último ano de faculdade e um trabalho individual da disciplina “Conversação em Língua Inglesa” para apresentar... adivinhem qual foi o assunto escolhido por mim para falar em meu trabalho? “Yes, my dears, cockroachs!” Graças a uma SUPERINTERESSANTE da época, preparei meu trabalho com muita dedicação, com direito a uma cena do cômico “Joe e as Baratas” e dois espécimes vivos capturados por mim em um vidro de maionese vazio para o terror de meus colegas de classe.
Detalhe é que antes de sair para a faculdade, por causa de meu nervosismo e ansiedade pela apresentação, me deu uma dor de barriga repentina e dos diabos, corri para a privada... eca!!! Quando ia deixando o banheiro, escorreguei, bati a cabeça no vaso e por alguns instantes não sabia quem era, onde estava... até que meu filho, pequeno na época, se aproximou e questionou-me:
_ Mamãe, que você “tá” fazendo deitada aí?
É, já ia lhe dando uma resposta cretina para sua pergunta imbecil, mas me contive...
A verdade é que minha apresentação foi um sucesso! E o povo da minha sala horrorizava a cada informação que eu dava:
_ Aborígines e outras tribos da África comem o líquido branco de dentro das baratas. Mesmo depois de mortas, os ovos das baratas ainda sobrevivem dando origem a mais barata. Uma barata vive em média 150 dias e fica grávida 8 vezes nesse período. Em São Paulo existem 200 baratas para cada indivíduo. As baratas vivem em nosso planeta há milhões de anos, apareceram antes dos dinossauros, sobreviveram a sua extinção enfurnadas em buracos e ainda se alimentaram dos restos mortais desses gigantes.
Provavelmente um dia nossa espécie desaparecerá e essas danadinhas assistirão nossa extinção de camarote, rindo de nossa fragilidade... sim, porque de frágil, barata não tem nada... Ok, eu matei essa zinha que passeava pela pia, mas... quantos descendentes ela deixou? E eu, quantos deixarei?

Thursday, July 01, 2010

Consolo para os cansados

5h50h! Maldito neném desgraçado se borrando de rir de mim. Aperto o soneca para ganhar mais uns minutinhos. A noite surrealesca arrabal-lista interferiu na hora quimérica e a destranbelhada do pequi do olho de Thundera resmunga emanuellisticamente atos canibais...
E a porra do neném de novo! Ô desgrama preta do caralho! Eu fui dormir às 2h da manhã. Eu preciso dormir mais. Mas levanto e blasfemando cumpro o ritual de todas as manhãs caralhais. Sabe, eu queria xingar menos, descansar mais.
No trajeto sempre atrasado matinal, que tem a duração de um desenho animado, vai eu, inanimada, desanimada enfrentar 47 endiabrados capetinhas capetando minha cabeça enquanto os três esquilinhos felizes animam estatísticas sociais para inglês ver. E eu pesco... peixinhos pulando uma cerquinha branca direto para a boca do tubarão faminto. E nesse estágio pesqueiro, nem acordada nem dormindo, nado em águas profundas num turbilhão de responsabilidades, confusões, anseios... até Arrabal me prender em sua rede.
Arrabal! Arrabalzando meu rabo e eu com sono querendo mandar todo mundo tomar no meio do centro do olho do toba. Especialmente certas pessoas megalomaníacas, mitomaníacas, que são tão verdadeiras quanto uma nota de três reais. Pessoas que eu poderia espancar e torturar até a morte e desaparecer com seus corpos antropofagicamente...

Cansaço??? Experimente escutar Sleepwalking com Modest Mouse lendo o Salmo 90 enquanto você vira uma garrafa de vodka e bate uma pensando em quem você deseja ...