Leka e Kaverna

Tuesday, February 21, 2012

Zumbido no ouvido



Quando a peça Memorial de Silêncios e Margaridas se encerra e todos aplaudem, a vontade real é de não aplaudir, não por ausência de qualidade, mas pelo tema que ela apresenta. Após o término saí calada e longe de olhares comecei a chorar. Não quis explicar nada a ninguém. E assim permaneci: tocada, reflexiva, introspectiva. Continuei muda até o dia amanhecer.

Após prestigiar, no espaço da Trupe de Truões na noite do dia 20 de agosto o unipersonal - Memorial de Silêncios e Margaridas, texto dirigido por Mara Leal, escrito por Luiz Leite e Narciso Telles, e interpretado por esse último, mais uma vez, como tem acontecido quando assisto aos espetáculos do grupo Coletivo Teatro da Margem, saí em êxtase ao final da peça, dessa vez pela forte temática que ganhou voz com a atuação do ator.

O espetáculo desvela torturadores confessos, desenterra mortos, lembra mutilados da ditadura, e, marchando, rememora a dor para celebrar a vida, para que assim não repitamos as atrocidades de uma época em que o silêncio imperava, tanto para quem queria continuar vivo, como nas bocas caladas dos desaparecidos que, na peça, são evocados.

Como não se entregar à interpretação do ator Narciso Telles, que com um olhar crítico e político, posiciona-se em um corredor (que, ao final, sugere o “corredor da morte” das torturas) e de lá se depara com uma cadeira de rodas, e transformando-se em outro personagem, apresenta-nos um torturador que sentia prazer em seus linchamentos. Na cena, um par de sapatos vazios e uma máquina de datilografia personificam o sonho de liberdade de quem os calçou e tocou suas teclas, na esperança de dias melhores que não vieram.

Ficamos aflitos ao ver a tortura ressignificada, ironicamente, de forma infantil para amenizar atrocidades. Ou, quem sabe, não seriam aquelas idéias e atos atrozes impulsivos, desprovidos de razão, como indicam as ações infantis que sempre navegam entre a emoção, impulsos e fantasias? Um dos momentos é aquele em que o espectador assiste ao jogo realizado com prendedores de roupa em partes do corpo do ator, que por sua vez dão colorido à dor sofrida por torturados, ao representarem as queimaduras de um homem. Outro momento, quando Power Rangers e cowboys de plástico se enfrentam e se matam numa brincadeira nas mãos de um menino. Como meu irmão e meu filho fizeram e como os filhos deles farão.

Em cena, também marchamos com a mãe que durante tantos natais cantou a ausência do filho através da voz de Dalva de Oliveira, o “Zum-Zum” que se fazia latente dentro dela por não esquecer que na sua família estava faltando um homem desaparecido nas entrelinhas da Ditadura e silenciar para isso, pois o zumbido não podia ser evidenciado à sociedade. Mas não era apenas um, eram dois, três, quatro... dez... cem... mil... então, vamos sair sem todos eles pois foi a ordem que deram, e mesmo com o bloco saindo mais triste, a vida continua, e no próximo natal faltarão alguns mais.

Palavras profundas e imagens fortes recompõem um período conflituoso da História, em que opressores e oprimidos viveram o sentimento do mundo sem sentimento pelo próximo, cuja afirmação é amar a pátria e para amá-la é preciso sucumbir às botas dos que governam o país e questionar se realmente um dia a utopia da fraternidade e igualdade será possível no mundo.

Memorial de Silêncios e Margaridas toca num tema tão forte e ao mesmo tempo tão delicado para o qual seus idealizadores (re) visitaram músicas, os escritos de Eduardo Galeano e Frei Beto, o prédio do Memorial da Resistência. Sem dúvida um espetáculo que não conseguimos tirar da cabeça, desses que deixam um zumbido no ouvido que incomoda por latejar lembrando algo horrendo que não conseguimos esquecer. Desses que queremos gritar “bravo” ao final e o grito não sai... fica preso. A vontade é de em silêncio, colocar ali, na cena que se finda uma flor. Qual delas? Uma Margarida, uma Rosa, uma Dália? Não importa, são flores que murcharão ou secarão como lágrimas de mães, irmãs e filhas que ficaram viúvas, órfãs esperando por eles que não voltaram ou voltaram aos farrapos.