Leka e Kaverna

Thursday, July 02, 2009

José




Um salão de festas pós-festa de aniversário (à fantasia), muita sujeira e bebida espalhada, silêncio profundo. José, fantasiado de Pierrot, está sentado em uma cadeira no centro, sozinho, tem um copo de uísque vazio na mão direita, está bêbado e reflexivo.


Nada. Nada restou. Acabou a “porra” da bebida. E a merda do cigarro. Ah, e os calhordas vieram todos, todos! Beberam, comeram, se pegaram pelos cantos escuros, se “empanzinaram” e foram embora. Hipócrita de mim que os convidei, uns falsos que me parabenizaram, trouxeram presentes e elogiaram a festa. E Dulcinéia... Dulcinéia não veio. Cara, mas como sou idiota, achei mesmo que ela viria? Burro! Ela não veio. E se não a tenho mais, por quem serei um cavaleiro andante que cavalga com o peito ardente? “O sonho acabou”, já disseram antes. A-CA-BOU! Foi embora. Fugiu, escafedeu-se! Sempre soube que acabaria no buraco com essa mulher, alertaram-me os calhordas, os filhos e até a ex-mulher... mas quis me deixar cair mesmo assim, pra ver a profundidade do “caralho” do buraco. “Puta” buracão! “Puta” consumista! Ela só ligava para o dinheiro e para o filho da mãe do Sid. Maldito labrador do inferno! Que Cérbero lhe dilacere a carne podre após a sua morte! Quantos mil reais essa cadela gastou no último aniversário dele? Era o meu dinheiro, meu dinheiro! E hoje no meu, nem um telefonema sequer. Se ela soubesse que já senti vontade de envenenar Sid. Ele com tanto, eu com nada. Algo como: Clodovil morreu e seus pobres cãezinhos de estimação vão para Paris morar com um amigo querido do falecido versus o pobre cão de rua acorrentado e privado de água e comida por um artista (tenho minhas dúvidas) numa dessas Bienais de Arte por aí. Quem vai ganhar a atenção de Dulcinéia? Façam suas apostas! (grande silêncio) Eu sou o cão morto dessa Bienal! Já Sid... (silêncio)
Eu preciso esquecer. Acho que vou para Minas por uns dias. Ah, velha Minas, que saudades das brincadeiras de quintal, dos primeiros beijos atrás do coreto, dos bailes sextas à noite no Café Moreira, das tardes conhecendo Shakespeare na biblioteca, do sorvete de passas... Ô saudade danada! (silêncio) Mas isso não há mais para mim, acabou! Assim como acabou essa festa de aniversário ridícula que fiz. E assim como acabou meu uísque, meu cigarro, Minas se foi, é outra agora, viva o progresso capitalista! Acabou aquela que eu amava. Igual acabou Dulcinéia. (silêncio) Estou velho e sozinho.
E eu? Quando vou acabar? Quase acabei aquela vez, mas esse coração de ferro mineiro é muito forte ainda, hihihi, eita nós! E apesar desse corpo cansado e desse cabelo prata, o trem de ferro cruza minha aorta e nada o detém! (silêncio) Quer dizer, o trem bala pode, ah, ele me faz ser lento... o trem Dulcinéia, com tantas viagens, tantos convites, tantas festas, o trem bala voa, e eu, sempre o trem de ferro mineiro. (silêncio) Acho que já estou acabado!
E agora, o que eu faço? O quê? (cantarola) “O Pierrot apaixonado chora pelo amor da colombina, e é sua sina chorar por alguém...” (silêncio) É, vou comprar cigarros! (Sai)


(Monólogo escrito by Leka)